Moacir J. M. Pereira
1 – Introdução:
Conhecer as origens da cartografia e fazer um paralelo com as diversas ideologias dos povos que contribuíram para seu desenvolvimento pode nos mostrar a evolução histórica das sociedades humanas e perceber a íntima ligação da evolução da cartografia e a ampliação do conhecimento do homem sobre o nosso planeta.
Também não deixa de nos denunciar as diversas ideologias de domínio de alguns povos sobre outros. Assim como nos expõe os modos de vida e gestão dos espaços ao exemplo dos Babilônios e Chineses. Os primeiros de forma de representar o espaço mesopotâmico e os segundos as formas de administração da China antiga.
Da sua origem até nossos dias a cartografia auxilia à entender e gerenciar os territórios para nele viver / sobreviver. Hoje as tecnologias existentes permitem ao homem analisar questões ambientais, discutir situações geopolíticas, combater endemias, ensinar nas escolas e universidades. Este último será abordado aqui para mostrar sua importância no processo de construção do conhecimento e apropriação do espaço geográfico pelos alunos futuros cidadãos.
2 – Origens da cartografia:
2.1 – Conceitos:
De acordo com a Associação Cartográfica Internacional é considerada cartografia: o “Conjunto de estudos e operações científicas, artísticas e técnicas, baseado nos resultados de observações diretas ou de análise de documentação, com vista à elaboração e preparação de cartas, planos e outras formas de expressão, bem como sua utilização.” (in NETO, 2010)
Também achamos em CEUB/ICPD (2003, Curso de GPS e Cartografia Básica) como “um método científico que se destina a expressar fatos e fenômenos observados na superfície da Terra, ou qualquer superfície mensurável.”
Estes conceitos todos dão o caráter científico para a cartografia, outros vão à este encontro. Não devemos deixar de enfocar que a cartografia tem seu caráter artístico, pois é necessária uma apresentação dos produtos cartográficos que levam ao entendimento adequado de seu conteúdo gráfico, com formas, cores, linhas, legendas se adequando ao objetivo final de cada produto.
Para NETO(2010), é considerada uma ciência por necessidade de informações precisas e ter seus fundamentos na matemática, astronomia e geodésia.
Alguns estudiosos defendem que sua origem é até mesmo anterior à escrita (MOURA FILHO, 1993) ou a sistematização da mesma. A necessidade de sobrevivência e de conhecimento dos territórios e limites, faziam com que os povos primitivos buscassem a representação de seus espaços em materiais diversos, como: argila, madeira, peles de animas, emaranhados de outros materiais.
Havia a necessidade, como há até nossos dias, de descrever, fazer análise e representar as diversas regiões e lugares conhecidos no planeta.
O que podemos observar, que a cartografia além de uma necessidade de sobrevivência dos povos, representou (e representa) um produto da cultura. Ou melhor. Produto do modo de vida e das diversas ideologias de várias sociedades e nações ao longo dos tempos. Pode, por exemplo, representar objetivos de dominação como no caso da expansão colonial dos séculos XVI, XVII e XVIII. Ou até mesmo mais recente, onde circulou na rede mundial de computadores, um mapa (pedagógico) representando a América do Sul, onde a região amazônica é representada como território norte americano. Isto nos faz lembrar Yves Lacoste...
2.2 – Primeiras representações:
Entre os povos que contribuíram para as bases e origens da cartografia estão os babilônios, egípcios, gregos, maias, esquimós, astecas e chineses (NETO, 2010).
A evolução da cartografia esta intimamente ligada à forma em que os povos vão ampliando seus conhecimentos sobre os espaços em que vivem, circulam ou tem pretensões de ocupação / apropriação. As categorias geográficas, paisagem, lugar, espaço, território e região estão vinculadas às representações dos espaços geográficos.
Ousamos aqui dizer, que o mapa (entendido como toda forma de representação espacial pela sociedade) é um dos elos, por essência multidisciplinar (termo da análise científica geográfica), entre a geografia física e a geografia humana, que hoje já aparenta ter superado esta dicotomia. É a forma, física ou mental, em que o homem identifica o espaço produzido. Homem e natureza, indo além de uma simplificação, mas embutindo ai a cultura, os modos de vida.
Fazemos agora um breve roteiro baseado em pesquisa bibliográfica da evolução histórica da cartografia.
De acordo com MOURA FILHO (1993), o vocábulo cartografia como um conjunto de atividades, fora empregado inicialmente pelo 2° Visconde de Santarém, Manuel Francisco de Barros (1791-1856), em uma carta direcionada à Francisco Adolfo Varnhagem (historiador) em 08 de dezembro de 1839. Hoje abrange todas as atividades científicas e artísticas (geodésia, fotogrametria, sensoriamento remoto) que tem por fim a produção de mapas.
Uma das primeiras referências sobre mapas vem da Babilônia. Aproximadamente 4.500 a .C., uma placa em barro cozido de 7x8cm que fora descoberto em Ga-Sur na Mesopotâmia, ao norte da Babilônia (NETO, 2010). Esta placa encontra-se no Museu semítico da Universidade de Harvard. Estudiosos explicam que representa provavelmente o vale do rio Eufrates.
É válido também lembrar que este povo desenvolveu o sistema duodecimal de numeração (base 12), desta forma os círculos foram divididos em 360°, o grau em 60 minutos e o minuto em 60 segundos. Base para as coordenadas geográficas. Além de conhecimento sobre outros planetas como, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, Saturno tidos estes como deuses (MOURA FILHO, 1993).
Tem-se também referência de mapa das ilhas Marshall, feito com fibras e conchas por indígenas, representando uma área oceânica onde desenvolviam pesca. Tendo rumos, direções e posicionamento de ilhas.
No Egito antigo houveram contribuições, mapas, porém estes foram feitos com material pouco resistente aos desgastes do tempo, papiro (fibra vegetal), muito se perdeu. Entretanto desenvolveram muitas técnicas de medições no vale do rio Nilo para sua produção agrícola. Além de utilizarem instrumentos de medição tal qual o relógio do sol, a clepsidra e o merkhet (espécie de gnomom).
A cartografia chinesa também foi desenvolvida com Pei Hsiu (224 a 273 d.C.), Erwin Raisz (in MOURA FILHO, 1993) com sua obra “Cartografia Geral” explica que se tem referência de mapas chineses datados cientificamente 227 a .C.
A invenção do papel contribuiu para a cartografia chinesa. Esta sem ter ainda contato o conhecimento cartográfico de outros povos. Suas técnicas possuíam princípios de orientação, quadrículas, distância, altitude, ângulos e outros (MOURA FILHO, 1993). Também na China, Hsieh Chuang (421-466 d.C.) desenvolveu um mapa de madeira sobre as principais províncias do império. Podemos observar um conhecimento técnico bem aprofundado pelos chineses. Mas qual o objetivo? A cartografia chinesa teve por finalidade a administração do império.
Com a presença dos jesuítas no século XVI, esta cartografia começa a ser modificada e influenciada pelo ocidente.
Os gregos tiveram influência considerável no desenvolvimento da cartografia, fundamentando bases científicas e sistematização como referência aos pólos, equador, latitude e longitude, trópicos (NETO, 2010).
Dentre estes destacam-se, Anaximandro de Mileto (611-547 a .C.) autor de um Mapa-múndi dos espaços conhecidos pelos gregos, posteriormente aperfeiçoado por Hecateu de Mileto (546-480 a .C.) na sua obra Descrição da Terra.
Aristóteles (384-322 a .C.) que zoneou as Terra por clima, considerou as longitudes e latitudes, os pólos e o equador.
Hiparco (194-120 a .C.), aprofundou o conhecimento dos babilônios com a divisão da Terra em 360° e o estudo das localizações(coordenadas).
Eratóstenes (276-196 a .C), fez a medição da circunferência da Terra com poucos recursos, apenas com análise geométrica, aproximando-se do real. Utilizou a observação do sol e a distância em Siena e Alexandria. Chegou a 46.250 Km , próximo dos 40.000 Km que se sabe hoje.
Cláudio Ptolomeu (90-168 d.C.) com seus estudos e sua obra Almagesto deu o apogeu da cartografia da época.
2.2 – Decadência e resgate da cartografia: Uma ferramenta a serviço dos reinos
Na idade média a cartografia sofreu um retrocesso, este conhecimento foi mascarado e perdido na Europa. Devido ao controle no plano ideológico e político da Igreja Católica Romana. Os mapas forma simplificados, com base na antiga cartografia romana, simplista e reducionista, no modelo “T” dentro do “O”. O centro do mundo seria representado Jerusalém. Tinha formato circular, denominado de “Orbis Terrarum”. Este foi certamente um período de decadência da cartografia.
Os conhecimentos desenvolvidos sobre os corpos celestes, sobre a esfericidade do planeta, os planetas iam contra os dogmas eclesiásticos.
Os povos árabes, após a morte de Maomé (632), haviam unificado a península arábica. Iniciaram um processo de expansão com base ideológica na Guerra Santa, conquistando o norte da África(Egito), Império Romano do Oriente, Pérsia etc.. até chegarem à península ibérica posteriormente expulsos no séc. XV com a Guerra de Reconquista dos povos ibéricos com apoio da Igreja. O fato importante deste avanço árabe por sobre os continentes, fora o resgate de boa parte do conhecimento deixado pelos gregos além de outros povos conquistados ou que eles faziam comércio. Resgataram e divulgaram conhecimentos de medicina, química, física, álgebra, trigonometria, astronomia, geografia e cartografia. Levaram para a navegação a bússola e o astrolábio.
Com o Renascimento todo este conhecimento é resgatado e aperfeiçoado, as grandes navegações expandem o olhar sobre o mundo, a cartografia se desenvolve com novas técnicas como os Mapas Portulanos, as Cartas de Marear. A tradução do Almagesto (de Ptolomeu) para o latim renovou o pensamento cartográfico no Ocidente (MOURA FILHO, 1993).
Outro fator de suma importância para a disseminação do conhecimento geográfico, veio da Alemanha, Gutemberg(1397-1468) criou a Imprensa, baratendo os custos e multiplicando as informações. A ciência cartográfica começa a circular em várias classes e sociais.
Vieram os grandes descobrimentos, países investiram em escolas e centros de estudos cartográficos, Portugal, Holanda, França, Inglaterra ... a cartografia auxilia o “virar da página da história” a idade moderna chega e esta ciência esta impregnada de ideologias. Conquistas, expansão e imperialismo.
Não iremos mais nos alongar sobre a origem da cartografia, mas podemos resumir que esta ligada à necessidade dos povos em sobreviver, conhecer e manter seu espaço vivido. Este parece ser um discurso de Ratzel e la Blache. Para que serve a serve a geografia, senão para a guerra (Lacoste).
Bem defendemos a “guerra” no plano da consciência, das idéias, do conhecer para lutar pelos seus direitos, para o cidadão não se deixar enganar os discursos forjados na exploração e na expropriação de classes sociais por uma minoria dominante. Defendemos este conhecimento para a autodeterminação dos povos, dos homens enquanto agentes do processo dinâmico da geografia de criação/destruição/recontrusção dos espaços vividos, dos lugares de forma consciente.
2.3 – Uma “Alfabetização Cartográfica” necessária.
Vamos agora abordar o uso de técnicas cartográficas como um exercício do olhar nas escolas para formar cidadãos conscientes. Aliás o termo “Alfabetização Cartográfica” é dado como uma aquisição do conhecimento cartográfico de acordo com Simielli(in DOS SANTOS, 2007).
Buscamos quais são as orientações dispostas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o ensino de geografia e fazemos um paralelo com o uso pedagógico das ferramentas cartográficas. Vamos então ao nosso objeto de estudo enquanto estudantes/pesquisadores/professores de geografia, o espaço geográfico.
De acordo com Milton Santos(1996) o espaço geográfico é um conjunto indissolúvel de objetos e de sistemas de ações, revelando, mostrando aos olhos do geógrafo as práticas sociais de grupos que criam, recriam, produzem, vivem nele.
Desta forma o uso de análises e ferramentas geográficas levam o aluno a entender os arranjos espaciais em diversas escalas e se identificar no processo. A cartografia vem auxiliar para o que o artigo 35, inciso III da LDB (Lei de diretrizes e bases da educação nacional – Lei 9.394/96) busca, como finalidade do ensino, o aprimoramento da pessoa com autonomia intelectual e pensamento crítico. Então a cartografia possibilita ao aluno ler e interpretar as relações sócio-espaciais, desta forma gerando seu conhecimento e tendo percepção crítica sobre os espaços em suas diversas escalas.
De acordo com o PCN deve-se orientar o olhar dos alunos aos fenômenos do espaço, observando as diversas relações. Mostrar e fazer perceber as contradições sociais, econômicas e culturais. Torná-lo sujeito do processo ensino-aprendizagem sabendo identificar suas responsabilidades e o seu “lugar-mundo”, a sua territorialidade.
A cartografia auxiliará desta forma ao entendimento das categorias geográficas: lugar, espaço, paisagem, região e territorialidade. O PCN, para a geografia, define que se devem desenvolver habilidades e competências de saber: “ler, analisar e interpretar os códigos específicos da geografia (mapas, gráficos, tabelas etc..), considerando-os como elementos de representação de fatos e fenômenos espaciais e/ou espacializados.”
“Reconhecer e aplicar o uso de escalas cartográfica e geográfica, como formas de organizar e conhecer a localização, distribuição e freqüência dos fenômenos naturais e humanos.”
DOS SANTOS(2007) fez um estudo sobre o uso da cartografia nas séries iniciais. Definindo sua importância para aprender a ler e interpretar o espaço, auxiliando o aluno a se localizar e entender as relações entre os objetos. Esta “pedagogia cartográfica” deveria ser ministrada de maneira lúdica no ensino fundamental, com jogos e brincadeiras (MARTINELLI, in DOS SANTOS, 2007). Deve-se sair do conceito de espaço abstrato para o espaço vivido, percebido.
Deve-se introduzir noções de geometria, como círculo, reta, medidas (FURLAN, 2007) assim chegando à noção de: pontos, linhas, área, lateralidade, orientação, localização, referências, noção de espaço e tempo (RIBEIRO, et al., 2001).
A orientação é para se trabalhar com maquetes, mapa do corpo, planta da sala de aula, construção de uma bússola, fotos e muito mais (ALMEIDA, 2001).
DOS SANTOS(2007) faz seguintes considerações: “investigar, enxergar, imaginar, desenvolver e construir o pensamento lógico espacial são requisitos importantes para a alfabetização da linguagem cartográfica, já que o conceito de espaço é muito abstrato para uma criança.”
Assim observa-se que deve-se “alfabetizar” cartograficamente o aluno para que ele possa ter competências de interpretar mapas, cartas, gráficos e assim consiga analisar de forma crítica as relações existentes no espaço geográfico. O aluno terá a percepção, ao avançar das séries e de seus estudos, do ensino fundamental ao médio, do espaço como um produto social, do local ao todo.
“A totalidade existe, mas é percebida através de uma construção. Quando estudamos uma cidade, um bairro, estamos atingindo um pedaço do TODO, uma fração do TODO.” (SANTOS in ROSETTE, 2002)
3 – Conclusão
A cartografia com suas origens históricas, de acordo com alguns estudiosos, tendo sido percebido até mesmo antes da escrita, se apresenta como uma necessidade pretérita e atual de saber o espaço e representá-lo para auxiliar nas formas de uso, ocupação e apropriação deste, de sua territorialidade.
Percebemos um estreito laço ideológico nas diversas representações cartográficas ao longo dos tempos nos diversos povos, representando o modo de vida destes. Dos babilônios até hoje nos estudos de sensoriamento remoto.
Cabe ao professor o papel de levar o aluno a perceber o espaço geográfico com o uso de ferramentas cartográficas, pois estas facilitam a percepção do local ao global. Estimulando e gerando competências de análise/criadora que estarão presentes nos futuros adultos/cidadãos que serão responsáveis por um mundo melhor. Tendo percepção crítica, multidisciplinar, podendo atuar em saúde, meio ambiente, ensino, tecnologia e vários outros campos.
A “Alfabetização Cartográfica” deve ser encarada pelo professor de geografia como uma forma integrada de levar o aluno à sua autonomia no processo de construção de seu conhecimento pelo estudo dos lugares e aplicação de conceitos abstratos da geografia em sua realidade diária. Entendendo e decodificando as diversas informações às quais ele, o aluno, recebe durante toda sua vida.
4 – Referências bibliográficas:
MOURA FILHO, J. Elementos de Cartografia: Técnica e Histórica. Belém: Falangola, 1993 – vol. 1;
MOURA FILHO, J. Elementos de Cartografia: Técnica e Histórica. Belém: Falangola, 1993 – vol. 2;
SANTOS, Fábio Rocha et Al. Metodologia da Pesquisa. São Paulo: Peason Pretice Hall, 2010;
Ministério da educação. Parâmetros curriculares nacionais: ensino médio. Secretaria de Educação Média e tecnológica. Brasília: Ministério da educação, 1999;
PONTUSCHKA, Nídia Nacib. Para ensinar e aprender Geografia. São Paulo: Cortez, 2007;
TEOBALDO NETO, Aristóteles. Linguagem e representações cartográficas. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2010;
ROSETTE, Adeline. Sugestões metodológicas para o ensino de cartografia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002;
SANTOS, Tarciane Araújo et Al. A Alfabetização Cartográfica na séries iniciais. Rio Grande do Sul, Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel, 2007.
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